Do The Intercept - Desde o dia três de abril, o mecânico José Ferreira e a dona de casa Silmara Mourão sofrem com o luto pela morte da filha. A bebê tinha apenas três meses e morreu com sintomas da covid-19.

Os pais contam que, por ter a imunidade muito baixa – ela nasceu com Síndrome de Bartter, uma doença rara que causa deficiência de potássio -, a criança ficava gripada com frequência. Da última vez, porém, ela teve muita tosse e falta de ar. Levada pela família para a Unidade de Pronto Atendimento, logo foi transferida para o Hospital Regional de Iguatu, interior do Ceará, e não teve tempo de chegar a um hospital de referência em Fortaleza. Devido às suspeitas de que ela tivesse sido infectada pelo coronavírus, a família não pode fazer o velório e teve apenas uma hora para se despedir.

A confirmação de que a filha morreu em decorrência da covid-19 chegou dois dias depois, por telefone, quando uma servidora da secretaria de saúde do município os informou sobre o resultado do exame. Minutos depois, e ainda sem entender direito o que estava acontecendo, o casal se deparou com o prefeito da cidade, Ednaldo Lavor, do PDS, falando sobre o caso em uma live no Facebook. Ele não divulgou nomes, mas disse a idade do bebê e o bairro onde a família morava. Foi o suficiente para acabar com todo o sossego do casal, que virou a noite recebendo ligações e mensagens. Agora, além do luto e da quarentena, passaram a ter que lidar com o preconceito dos moradores da cidade pessoalmente e nas redes sociais.

Conversei com José por telefone na terça-feira. Ainda muito abalado, ele, que estava com Silmara ao seu lado, contou o que a família está sofrendo e implorou para que as pessoas os deixem viver o luto em paz. O relato foi editado para fins de clareza.

O prefeito Lavor e o secretário municipal de Saúde, George Xavier, foram procurados, mas não responderam ao contato.

Estávamos rezando a novena do domingo de Ramos quando recebemos uma ligação de um DDD 081. Era uma mulher de Recife, perguntando se estávamos bem, se sentimos alguma coisa nos últimos dias e falando sobre alguns cuidados deveríamos tomar. Ficamos surpresos com aquilo e perguntei por que ela estava falando essas coisas. Foi aí que ela disse que era do Ministério da Saúde e estava monitorando as pessoas para saber o como elas estavam.

Em seguida, ligou um outro número, agora de Iguatu [cidade do interior do Ceará, a 440 quilômetros de Fortaleza]. Era uma mulher da secretaria de saúde da cidade, que disse que o exame da nossa bebê tinha dado positivo para o coronavírus. Assim, de supetão. Ela ainda disse que se a gente quisesse ver o exame, mandava. Mas a ligação caiu, e não conseguimos mais contato. Eu queria que ela tivesse levado o exame até a minha casa, que ela atendesse o celular e esclarecesse as coisas. Mas o que aconteceu foi que, minutos depois, o prefeito estava falando do caso em uma live no Facebook. Só na segunda-feira, depois da gente passar a noite sem dormir, com o povo ligando e mandando mensagem, é que o exame chegou.

Nossa filha tinha um quadro de saúde muito delicado. Ela tinha Síndrome de Bartter, uma doença rara que causa deficiência de potássio no organismo. Por isso, sua imunidade era baixa e ela sempre ficava gripada. Com três meses, o tamanho era de uma recém-nascida – só pesava 3,4 quilos. Nós sempre íamos a Fortaleza para tratar desses problemas dela. A última vez tinha sido no dia 12 de março.

“No domingo à noite, quando estávamos na situação mais frágil, o prefeito achou por bem machucar mais, soltando a história na internet.”

Depois dessa viagem, ela ficou gripada, ficava muito cansadinha e tossindo. Nem tinha essa coisa de coronavírus no Brasil ainda, mas já estávamos com medo. Medicamos em casa, para evitar sair. Foi no dia 31 de março que ela piorou, e a gente correu até a UPA. De lá, ela foi transferida às pressas para o Hospital Regional de Iguatu. No caminho, dentro da ambulância do Samu, sofreu uma parada cardíaca, mas chegou com vida no hospital. No dia 1º ela teve que ser entubada e foi solicitada a transferência para Fortaleza porque aqui não tinha suporte para atender. Mas não deu tempo. No dia 3, sexta-feira, nossa filha morreu.

A assistente social disse que iam coletar o material para o exame do coronavírus e que o resultado saía em 15 dias. O pior que aconteceu foi a prefeitura não ter nos procurado antes para explicar tudo direito. No domingo à noite, quando estávamos na situação mais frágil, o prefeito achou por bem machucar mais falando da morte da nossa bebê no Facebook. Na cidade, tem pessoas de alto escalão que estavam com a suspeita do coronavírus e nunca foi falado nada delas. Aí, só porque somos de classe inferior, rasgaram logo na rede social.

Depois disso, imediatamente todo mundo começou a ligar e mandar mensagem no Facebook, Instagram, WhatsApp. Saiu foto minha com a menina nos grupos, fizeram reportagem nos jornais, jogaram foto de uma criança em uma encubadora na internet dizendo que era nossa filha e nem era. Ela nunca ficou em uma encubadora. Tudo isso foi muito constrangedor. Estamos sofrendo muita rejeição da sociedade. Todos nos tratam com preconceito. Estamos sendo excluídos e temos recebido muitas críticas no Facebook. Inventaram até que minha esposa estava hospitalizada. Só deus sabe como estamos. Recebemos apoio apenas da família.

Temos outras filhas, uma de 11 anos e outra de 17 anos. Essa também tem uma deficiência, a Síndrome de Turner, que é a carência do hormônio do crescimento. Como é que nossas filhas vão enfrentar uma sala de aula quando voltarem à escola? Como vão enfrentar a rejeição e o preconceito? A prefeitura não está dando nenhum apoio psicológico.

No dia que nossa filha morreu nos disseram para seguir um protocolo do Ministério da Saúde. Orientaram que não podia ter velório, que era no máximo uma hora. Aquilo cortou o coração da gente. Nós estamos de luto e, depois de a história ir para as redes, ficamos muito assustados. Nossa vida não merece ser exposta desse jeito. Minha filha é um anjinho, está lá no céu. Ela merece descansar em paz - e nós também.

Texto escrito por: Nayara Felizardo para o The Intercept Brasil