Foram os primeiros de muitos. Naquele “corredor da morte” há mais de 130 presos - 60 por tráfico - dos quais um terço estrangeiros. O brasileiro Rodrigo Gularte é um deles.
Desde 2003, quando Archer foi preso, o governo brasileiro fez o que estava a seu alcance para evitar sua execução. Prestou apoio consular - trabalho pouco reconhecido, mas importantíssimo – e realizou pressão política, em todos os níveis, pela comutação da pena. O presidente Lula e a presidenta Dilma trataram do tema com suas contrapartes indonésias, pessoalmente e por meio de seis cartas oficiais. Como último recurso, Dilma telefonou ao presidente Widodo, em 16 de janeiro, para transmitir seu apelo pela vida do brasileiro.
Por que tanta atenção a Archer e Gularte? Porque são os únicos brasileiros condenados à morte, entre os mais de 3 mil presos no exterior. A pena de morte em tempos de paz foi abolida do ordenamento jurídico nacional em 1889.
A clemência solicitada pelo Brasil é um instituto previsto na legislação indonésia. Não se pediu a libertação de Archer. Não se propôs que o governo indonésio fosse leniente com o tráfico de drogas, também em nosso País considerado crime grave. Não se colocou em questão o sistema judiciário, a legislação ou a soberania da Indonésia. Conceder a clemência seria, portanto, também uma forma de aquele país exercer sua soberania.
O pedido de clemência é prática internacional comum quando um país tem seus cidadãos em “corredores da morte” estrangeiros. A Holanda e a Austrália fizeram o mesmo por seus nacionais presos na Indonésia, assim como a própria Indonésia o fez por cidadã do seu país condenada à morte, por homicídio, na Arábia Saudita.
Consumada a execução de Archer, o governo brasileiro chamou seu embaixador em Jacarta para consultas e manifestou seu protesto ao embaixador indonésio em Brasília. Foi uma resposta política ajustada, ponderada e refletida à decisão (também política) de negar o pedido de clemência.
Embora as medidas adotadas pelo Brasil sejam coerentes com o direito internacional, com a Constituição Federal, com nossa tradição diplomática e com o sentimento majoritário da sociedade brasileira, elas têm sido objeto de críticas por setores da imprensa e das redes sociais.
Primeiro, alguns consideram a reação brasileira forte demais. Chamaram o gesto voluntarista e impulsivo. Acusou-se o Brasil de “flertar com o tráfico de drogas” ou “minimizar as consequências desse crime”. Não se falou, contudo, que o governo da Holanda agiu exatamente como o Brasil, quando seu cidadão foi executado no mesmo dia.
Segundo, há quem celebre como justa a morte de Archer: “um traficante a menos”. A Constituição Federal brasileira proíbe a pena de morte. Essa cláusula pétrea fundamenta-se na compreensão de que aquela punição é cruel, desumana e – embora essas considerações éticas já devessem bastar para bani-la – sobretudo ineficaz na prevenção ao crime. A posição brasileira é acompanhada pela maioria dos países.
O Chanceler holandês, por exemplo, considerou a execução de sua concidadã “trágica” e afirmou que a pena de morte é “punição cruel e desumana, que constitui negação inaceitável da dignidade e da integridade humana”. A União Europeia classificou o episódio como “profundamente lamentável” e pediu que a Indonésia suspenda – como primeiro passo em direção à abolição dessa pena – todas as execuções pendentes.
A ONU declarou que a pena de morte para crimes relacionados a drogas é contrária à jurisprudência internacional e pediu que a Indonésia comute as sentenças dos demais presos por tráfico. Recordou que, dos 58 países que preveem legalmente a pena capital, apenas 13 incluem o tráfico de drogas no rol de crimes assim puníveis.
A Austrália, que tem dois cidadãos no “corredor da morte” indonésio, ficará, nas palavras de sua Ministra das Relações Exteriores, “chocada” caso se consumem as execuções, que “não são a melhor maneira de lidar com o problema das drogas”. O Primeiro-Ministro australiano pediu clemência por considerar a pena de morte “inconsistente com uma sociedade humana”.
Outros avaliaram a reação brasileira como fraca demais. Para esses críticos, não teríamos nos empenhado o suficiente para salvar Archer; deveríamos ter ameaçado a Indonésia ou até mobilizado nossas tropas para resgatá-lo. Ignoram que a pressão política deve ser exercida por meios adequados e, sempre que possível, de modo discreto. Pôr a perder o canal de diálogo com o governo indonésio seria contraproducente para os próprios cidadãos brasileiros que se pretende defender.
O insucesso das gestões políticas junto ao governo indonésio não é exclusivo do Brasil. Até o momento, nenhum outro país teve seu pedido de clemência aceito, numa mostra de que o novo Presidente indonésio está decidido a levar adiante a promessa eleitoral de efetivar as execuções.
Finalmente, invoca-se a tese, periodicamente reciclada, da “incoerência” do governo brasileiro, que “atua com dois pesos e duas medidas” em matéria de direitos humanos. Alguns advogam que o empenho na obtenção de clemência para Archer e Gularte na Indonésia não seria acompanhado de condenações a arbitrariedades cometidas por outros países.
Vale lembrar que o Brasil condena sistematicamente todas as formas de violência e terrorismo e participa de modo diligente do processo, conduzido pela ONU, de revisão periódica, universal e não seletiva da situação dos direitos humanos em todos os países.
Alguns transpõem a tese da “incoerência” para a política interna: “faz-se tudo para salvar um traficante na Indonésia, e nada para salvar as vítimas da violência no nosso país”. Essa comparação busca manobrar a compreensível comoção nacional com nosso altíssimo e injustificável índice de homicídios – não para debater honestamente as causas dessa violência e as estratégias mais adequadas para combatê-la, e sim para lançar cortina de fumaça sobre esse mesmo debate.
Aprimorar o combate ao crime organizado, ao porte ilegal de armas e à violência policial injustificada tornará o Brasil mais seguro. Matar Archer e Gularte, não. No país em que 50 mil pessoas são assassinadas por ano, eles não são “dois traficantes a menos” – são dois brasileiros mortos a mais.
Precisamos nos perguntar: com a morte de Archer, o mundo ficou mais seguro? As famílias que sofrem com entes queridos dependentes de drogas tiveram seus problemas resolvidos?
Cada um de nós constrói a vida de maneira diferente, com seus próprios erros e acertos. Na hora da morte, especialmente diante da mira de um fuzil, somos todos iguais. Nem heróis, nem mártires, apenas pessoas. E pessoa nenhuma merece morrer.
Não há dicotomia entre tentar evitar as execuções de brasileiros na Indonésia e proteger a vida dos demais brasileiros. As duas ações são necessárias e derivam do mesmo princípio constitucional: o respeito à dignidade humana.
É com esse espírito que o Brasil deve trabalhar, até o último dia, para evitar a execução de Rodrigo Gularte. Afirmar que salvar sua vida não corresponde ao interesse nacional, além de revelar visão limitada e equivocada sobre o alcance desse interesse, agride, gratuitamente, todos os brasileiros presos no exterior.
Gostemos ou não, essas pessoas são - da mesma forma que os mais de 700 mil presos em nosso país - parte da sociedade brasileira. Como todos nós, devem ter seus direitos fundamentais assegurados, sob pena de deixarmos ruir o edifício democrático. E a história ensina que este, quando desaba, cai sobre as cabeças de todos, sem distinguir “bandidos” de “homens de bem”.
* Livia Sobota é diplomata e assessora da Presidência da República.
O artigo expressa apenas a visão pessoal da autora.
Reprodução da Revista Fórum