Não existe maior horror do que a guerra, não há nada mais estúpido – isto é um fato incontestável. Porém, ao lado desse fato caminha uma verdade igualmente incontestável, já que a guerra faz parte de nossa índole humana e compõe uma característica intrínseca da nossa espécie; se é a medida de nossa barbárie, apenas comprova o quão bárbaros somos hoje e sempre fomos durante toda a nossa história.
Nesse contexto, a guerra na Ucrânia entre Rússia e Estados Unidos nada mais é do que uma expressão humana em uma de suas facetas mais terríveis, como são todas as guerras. Porém, podia ser pior (e muito possivelmente ainda venha a ser).
Ao analisar o momento em que esse conflito tece seu estopim, cerca de dois meses atrás, uma análise calculista demonstra o brilhantismo da aliança informal sino-russa em determinar esse momento para dar início a um conflito que, no longo prazo, seria inevitável, pois quem propõe ou parte para a guerra sempre persegue o objetivo único que é o triunfo. Desse modo, em um mundo combalido pela pandemia do novo Coronavírus, que busca se estabilizar e retomar sua atividade econômica, porém ainda frágil em seus alicerces e cheio de incertezas, não poderia oferecer melhor oportunidade para o início dessa guerra, mas não apenas da guerra na Ucrânia, e sim do conflito mundial que engaja todas as nações.
O que seria do mundo hoje sem essa guerra?
O que observamos no cenário internacional durante toda pandemia, especialmente no lado ocidental do globo em que vivemos, foi uma busca desesperada para manter as coisas como elas sempre foram. As políticas e os anseios governamentais se focaram em retomar o estado das coisas que, em primeira instância, foi o que nos levou à pandemia. O negacionismo imperou em uma desesperada tentativa de manter a atividade econômica nos mesmos padrões anteriores à pandemia, e quando ela começou a arrefecer, as pessoas retornaram às suas vidas “normais” como se apenas uma intempérie qualquer houvesse passado. Nesse sentido, a guerra na Ucrânia nos impede de retornar àquela normalidade que nunca foi normal, exceto, talvez, para aqueles que lucravam e querem continuar lucrando com ela.
Os problemas globais, como a fome, a miséria, a ecologia e a questão climática nunca foram prioridades em nosso mundo pré-pandemia, e a própria pandemia foi resultado dessa política. Após a pandemia e a retomada da “normalidade”, essas questões que afligem a humanidade continuam em segundo plano, afinal, isso faz parte de tal “normalidade”. Invariavelmente, tais questões, aliadas do esgotamento de nossos recursos naturais, teriam de, por bem ou por mal, ser adereçadas e solucionadas, pois a falta de solução nos levaria à guerra. A guerra na Ucrânia e o conflito mundial que dela se desenha nada mais representam do que a guerra que, cedo ou tarde, teríamos de travar.
Está claro, hoje, que as megacorporações transnacionais e as cadeias de investimento da Bolsa de Valores são os verdadeiros detentores do poder, os governos apenas agem em prol da manutenção de seus interesses, pois não detém mais a força popular para reverter ou cessar a sanha pelo lucro que essas corporações buscam. Mais uma vez, a pandemia deixou isso bastante claro, pois enquanto as pessoas se contaminavam nas ruas e morriam nos hospitais, a preocupação maior dos políticos era “flexibilizar” as medidas de contenção. Nesse mundo negacionista, é mais fácil citar as exceções, pois a regra era submeter o povo à morte em prol da economia. Uma dessas exceções é a China, que tratou a pandemia como um ato de guerra e teve ótimos resultados em conter a disseminação da doença.
Em contraposição à China, temos os Estados Unidos, o grande líder do negacionismo mundial durante a pandemia, país recordista de óbitos em seu decorrer e a grande bandeira capitalista mundial, atualmente em sua faceta neoliberal. Observa-se aqui, que não é a toa tal antagonismo materializar-se em um conflito que sobrepõe as nações, pois trata-se de um conflito de ideias.
No passado, a Guerra Fria também constituiu um conflito de ideias, de um lado os Estados Unidos bandeirava em prol do livre mercado, do capitalismo; do outro, a União Soviética, cuja ideia de gerir a sociedade abdicava desse livre mercado. Hoje, no conflito entre Estados Unidos e China, com o braço russo em ação na Ucrânia, colidem o negacionismo e a realidade. Nesse sentido, a real politic dos russos é uma luta contra o negacionismo norte-americano.
Enquanto se especulava a respeito de uma guerra entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria, ela nunca viria a acontecer – e muitos cientistas políticos têm como certeza de que esse conflito não aconteceu devido ao fato de ambas as nações possuírem arsenais nucleares; caso contrário, a guerra que se inicia este ano talvez já tivesse acontecido algumas décadas atrás. O colapso da União Soviética parecia colocar um fim nessa possibilidade, mas a ausência da Rússia no jogo político internacional só fez imperar o negacionismo norte-americano até que ele mostrasse sua faceta mais podre durante a pandemia do novo Coronavírus.
Do negacionismo norte-americano nós já sabemos o que esperar, nós já sabemos que não será através da negação de nossos problemas que os mesmos serão solucionados. Já são mais de cinquenta anos de negação dos problemas que citamos acima: a fome, a miséria, a ecologia e o aquecimento global. Cinquenta anos em que a lógica capitalista nos impede de adereçá-los com a devida propriedade. Afinal, para resolver esses problemas, talvez tenhamos que retomar os patamares de consumo como os da antiga União Soviética. Mas quem quer retomar aquele patamar se tudo que se fez até aqui foi tentar destruí-lo? Isso não irá acontecer, não por bem, muito menos por bom senso. Nesse aspecto, a guerra dos homens de hoje é a batalha do clima de amanhã, e não dá mais para negar. Achar que essa guerra não deveria ou não iria acontecer é apenas mais uma expressão negacionista que contamina nossas faculdades.
Porém, alguém indagará: “Se esta guerra é um combate ao negacionismo capitalista e sua lógica consumista, como a China representa uma ideia contrária a isso se é um país igualmente capitalista e consumista?”.
A resposta é apenas conjuntural, pois se baliza em uma liderança que se provou capaz de confrontar o negacionismo ocidental na atualidade, porém jamais saberemos se esta resposta será contínua. Mas, se de um lado nós já sabemos que nada podemos esperar, fica a esperança de que o outro lado agirá de outra forma – e se não dermos uma chance a ele, jamais saberemos se iria ou não dar certo. E, ao menos até aqui, esse lado, a liderança chinesa e a real politic russa, já deu algumas provas de sua capacidade e vontade de reverter esse quadro negacionista. Como o outro lado não cederá pela política tradicional, será por sua extensão bélica que as coisas se resolverão, não há como fugir disso. Esta é uma das facetas do negacionismo que está sendo combatida nessa guerra.
Aliás, também não estaria no fato de os Estados Unidos negarem ao mundo oriental sua participação na liderança política das nações uma das expressões desse negacionismo? De um negacionismo que não aceita outras ideias além da sua própria? O unilateralismo norte-americano representa o negacionismo pela não aceitação do mundo globalizado e sua inerente multipolaridade. É um negacionismo consciente e covarde como de um macho-alfa que não aceita outro macho-alfa em seu bando; daquele lidera o bullying e não permite ser confrontado.
Negar a guerra hoje é a certeza do conflito amanhã, assim como sempre foi uma certeza de que Estados Unidos e União Soviética se defrontariam e a guerra na Ucrânia é a contraprova dessa inevitabilidade. E não seria o adiamento do inevitável apenas mais uma forma de negacionismo? Portanto, a guerra atual pontua o início do fim desse negacionismo, uma vez que os negacionistas sejam derrotados. Adiar o conflito nada mais representaria do que relevar às próximas gerações a sua disputa. Não guerrear significa uma derrota maior, mais longa e a procrastinação de nossas dores, pois os problemas que afligem a humanidade tendem a se intensificar cada vez mais em volume e velocidade.
O preço do combustível, da energia e do alimento que hoje se inflaciona em função da guerra na Ucrânia é o preço que se inflacionará no futuro se a paz mantida for a paz negacionista. Da paz que se ilude com um eterno crescimento econômico, mas cujos recursos naturais jamais sustentarão para sempre. Paz é sinônimo de negacionismo.
Uma guerra no futuro, quando os nossos problemas se intensificarem, seria muito mais violenta e cruel do que na atualidade, até porque vivemos em mundo que não cessa sua prostituição ao que de pior deriva da guerra, que é o contínuo preparo para seu implemento: uma incessante corrida armamentista cujo fim é a atualização de seu potencial cada vez mais destrutivo em um holocausto bélico. E que covardia nossa deixar para nossos filhos a guerra oriunda dos problemas que nós nos provamos incapazes de resolver.
Nós falhamos em nossa tentativa de criar um mundo mais sereno e inclusivo em meio a paz e pelo exercício do bom senso, mas não podemos mais adiar, assim só a guerra nos levará ao ponto em que nossos problemas possam ser solucionados. E é por isso que eu agradeço à Rússia pela guerra, pois ela cobra de nós aquilo que sempre negamos.